terça-feira, 5 de abril de 2011

GILLES DELEUZE O PENSAMENTO E O CINEMA: A NOVA IMAGEM DO PENSAMENTO

Adhemar Santos de Oliveira

Um dos grandes problemas encontrado na história da filosofia por Gilles Deleuze é a questão do pensamento e as suas novas formas de expressão do pensar. Desse modo, quando a sua filosofia se encontra em relação a não-filosofia, o filósofo francês estabelece uma conexão a partir da questão central que vem percorrendo em todas as suas obras, desde seus textos monográficos sobre filósofos como Spinoza, Nietzsche, Bergson, entre outros, e na literatura de Proust e Kafka, na arte de Francis Bacon, no teatro de Backett, no cinema e nas ciências, pois, Deleuze nos colocará diante de questões como: O que é o pensamento?, o que é pensar? e Em que medida é possível dar ao pensamento novos meios de expressão tanto na filosofia, como nas ciências, nas artes e na literatura?
Para traçar um caminho no pensamento deleuzeano, temos que partir da constituição do problema da imagem do pensamento e da gênese da criação do conceito.
Por conseguinte, Deleuze apresenta em suas obras um esforço de crítica a um tipo de pensamento que imposto pela filosofia da representação nos indica a construção de uma filosofia da diferença. Porém tanto a crítica ao modo de pensamento da filosofia da representação e com a construção de uma filosofia da diferença, o filósofo francês vai nós indica para uma nova imagem do pensamento ou um pensamento sem imagem.
Contudo, Deleuze em sua obra Nietzsche e a Filosofia (1976) indica uma distinção entre duas imagens do pensamento uma moral e dogmática e outra nomeada de uma nova imagem do pensamento. Porém, destaco outras duas grandes obras, a qual o filósofo francês vai mostrar o problema da imagem do pensamento: Proust e os signos (1987), e Diferença e Repetição (1988).
Na obra Proust e os signos Deleuze irá analisar o tempo em Recherche du temps perdu e apresentará a imagem dogmática do pensamento como uma imagem racionalista da filosofia questão a qual o filósofo francês já havia mostrado em Nietzsche e a Filosofia. Porém, Deleuze nos mostra em Proust e os signos uma imagem do pensamento com as relações entre signos, pensamento e criação.


O que nos força pensar é o signo. O signo é o objeto de um encontro; mas é precisamente a contingência do encontro que garante a necessidade daquilo que ele faz pensar. O ato de pensar não decorre de uma simples possibilidade natural; ele é, ao contrário, a criação verdadeira. A criação é a gênese do ato de pensar no próprio pensamento. (Deleuze, Gilles. Proust e os signos. Pag. 91)

Esta gênese apontada pelo filósofo francês vem a ser implicada como alguma coisa que violente o pensamento, e que retire o pensamento de sua imobilidade, consequentemente, esta violência ocorrida pela ação de forças externas. É partindo desse pensamento que estabelecemos a relação entre cinema e pensamento, pois tal arte vem apresentar o problema do pensamento através de suas imagens, apontando assim para uma nova a imagem do pensamento.
Entretanto, em Proust e os signos, Deleuze também irá mostrar vários tipos de signos, como os signos mundanos, amorosos e o da arte, sendo que o último transforma todos os outros signos.


[...] que o problema de Proust é o dos signos em geral e que os signos constituem diferentes mundos: signos mundanos vazios, signos mentirosos do amor, signos sensíveis materiais e, finalmente, signos essenciais da arte (que transformam todos os outros). (Deleuze, Gilles. Proust e os signos. Pag. 13)


Ademais, Deleuze, ao analisar a arte cinematográfica criará vários conceitos para tal arte. Além disso, o filósofo francês pensa o cinema como um movimento automático que faz surgir em nós um autômato espiritual.
Para Deleuze as imagens que o cinema nos oferece são potências comuns, que nos forçam a pensar, e este pensamento que é provocado pelas imagens do cinema vão nos provocar um choque. Esse choque que é provocado pelas imagens e signos cinematográficos. O filósofo francês chamará este choque de “noochoque”; chegando a citar Heidegger , ao afirmar que o homem sabe que tem a possibilidade de pensar, porém ele ainda não garante que sejamos capazes de atingir espontaneamente o pensamento; o fato de termos a possibilidade de pensar não nos coloca automaticamente no plano do pensamento.


É essa capacidade, essa potência, e não a mera possibilidade lógica, que o cinema pretende nos dar comunicando-nos o choque. Tudo se passa como se o cinema nos dissesse: comigo, com a imagem-movimento, vocês não podem escapar do choque que desperta o pensamento em vocês. Um autômato subjetivo e coletivo para um movimento automático: arte das “massas” Todos sabem que, se uma arte impusesse necessariamente o choque ou vibração, o mundo teria mudado há muito tempo e há muito tempo os homens pensariam. (DELEUZE, Gilles. Cinema II: A Imagem-Tempo. Pag. 190)

Logo, o espectador sofre um choque que o leva para o seu limite, e força o pensamento a pensar o todo enquanto totalidade intelectual que ultrapassa a imaginação. Para Deleuze, a imagem torna-se, então, pensamento.
Deleuze, quando propõe um estudo no discurso científico ou expressões artísticas e literárias, jamais pretende fazer filosofia das ciências, das artes e da literatura, porém, para ele a filosofia tem com papel criar conceitos e não reflexão, pois entende que o filósofo é criador e não reflexivo.


Não creio que a filosofia seja uma reflexão sobre outra coisa, como a pintura ou o cinema... Não se trata de refletir sobre cinema... O cinema não é para mim um pretexto ou um domínio de aplicação. A filosofia não está em estado de reflexão externa sobre os outros domínios, mas em estado de aliança ativa e interna entre eles, e ela não é nem mais aberta, nem mais difícil... Quando se vive em uma época pobre, a filosofia se refugia em uma reflexão “sobre”... Se ela nada cria, que mais pode fazer se não refletir sobre?... De fato, o que interessa é retirar do filósofo o direito à reflexão sobre. O filósofo é criador e não reflexivo. (MACHADO, Roberto apud DELEUZE, Gilles. Deleuze, a arte e a filosofia. Pag. 12)

Imagem-movimento e Imagem-tempo são conceitos que Deleuze criou para relacionar filosofia e cinema, pois a filosofia é criadora de conceitos e criará conceitos para o cinema. Esta relação de filosofia e cinema é uma relação da imagem com o conceito. Contudo, Deleuze propõem uma nova forma de imagem do pensamento.
Ao analisar este problema, das relações entre cinema e pensamento, retornaremos na base do cinema clássico e nos mestres da montagem. O filósofo francês estabelece três pontos de criação cinematográfica e a possibilidade de pensar o cinema, ele irá remeter ao cinema francês como um cinema do sublime matemático ou dinâmico, ao cinema norte americano como um cinema orgânico e ativo e ao cinema soviético, com sua montagem dialética, destacando o cineasta Eisenstein.
No cinema soviético, em especial nas criações cinematográficas de Eisenstein, ele faz com que o movimento vai primeiro da imagem ao pensamento, do preceito ao conceito, nesta forma as imagens e seus componentes crido pelo cineasta russo provocam um choque sobre os espectadores que o forçam a pensar o Todo. Pois, o Todo só pode ser pensado com a representação indireta do tempo, que decorre do movimento e com intermédio da montagem, visto que, a montagem é fundamental para o cinema clássico em especial para o cinema de Eisenstein. Nesta forma, o cinema soviético coloca o Todo sendo pensado como uma totalidade orgânica de acordo com a dialética. Deleuze mostra que o cinema de Eisenstein é muito influenciado pela dialética hegeliana:


O todo não deixa de ser aberto (a espiral), mas é para interiorizar a sequência das imagens, tanto quanto para se exteriorizar nessa sequência. O conjunto forma um Saber, à maneira hegeliana, que reúne a imagem e o conceito como dois movimentos indo um em direção do outro. (DELEUZE, Gilles. Cinema II: A Imagem-Tempo. Pag. 195)

No cinema soviético, Deleuze aponta três momentos que vai estabelecer a questão entre pensamento e cinema, o primeiro momento vai da imagem ao conceito, o segundo momento vai do conceito a imagem e o terceiro momento provoca o encontro entre a imagem e o conceito, desta forma, uma não antecipa mais o outro, eles se confundem. Diante disso, estamos diante de um cinema dialético e que o terceiro momento seria, para Eisenstein a síntese do pensamento e do próprio cinema.
Não obstante, esses três momentos apontados por Deleuze entre o pensamento e o cinema só podem ser encontrados no cinema das imagens-movimento, um cinema preso ao esquema sensório-motor.

É bem verdade que três relações do cinema e do pensamento se encontram por toda a parte, no cinema da imagem movimento: a relação com um todo que só pode ser pensado numa tomada de consciência superior, relação com um pensamento que pode ser só figurado no desenrolar subconsciente das imagens, relação sensório-motora entre mundo e o homem, a Natureza e o pensamento. (DELEUZE, Gilles. Cinema II: A Imagem-Tempo. Pag. 197)


Ao analisar a ideia de choque no pensamento já pressupomos a imagem-ação, pois tal imagem é o ápice da imagem-movimento.
No entanto, foi com o cineasta Alfred Hitchcock que instalou uma crise na imagem-ação, substituindo o choque pelo suspense, a dialética de Eisenstein por uma lógica das relações, o cinema hitchcockiano passa de uma imagem do pensamento para imagem-pensamento, por conseguinte, estamos diante da mudança da imagem-movimento para a imagem-tempo.
Todavia, ao pensar as questões de cinema e pensamento, Deleuze nos aponta a importância que o dramaturgo Antonin Artaud tem para esta relação, pois, ele nos mostra que as relações entre o pensamento e o cinema, com o surgimento do cinema moderno deixa definitivamente o esquema sensório-motor do cinema clássico.


Se essa experiência do pensamento diz respeito essencialmente (não exclusivamente, no entanto) ao cinema moderno, é, antes de mais nada, em função da mudança que afeta a imagem: esta deixou de ser sensório-motora. Se Artaud é precursor, de um ponto de vista especificamente cinematográfico, é porque invoca “verdadeira situações entre as quais o pensamento encurralado procura uma saída sutil”, “situação puramente visuais, cujo drama resultaria de um choque feito para os olhos, feito, se ousamos dizer da substância mesma do olhar”. Ora, essa ruptura sensório-motora encontra sua condição mais acima, e remonta a uma ruptura do vínculo entre o homem e o mundo. A ruptura sensório-motora faz do homem um vidente que é surpreendido por algo intolerável no mundo, e confrontando com algo impensável no pensamento. (DELEUZE, Gilles. Cinema II: A Imagem-Tempo. Pag. 204-205)


Consequentemente, os filmes deixam de apresentar uma história para desenvolver problemas, invadindo definitivamente o campo do pensamento: há o encontro do pensamento com a imagem, ou como diz Deleuze: um filme deixa de ser uma mera associação de imagens, o pensamento torna-se imanente à imagem. (VASCONCELLOS, Jorge. Deleuze e o Cinema. Pag. 166). Com a crise gerada por Hitchcock na imagem-ação e com o advento do cinema moderno o pensamento no cinema torna-se problemático.
Dos cineastas modernos, Jean-Luc Gordad é, para Deleuze, o melhor exemplo para demonstrar as relações entre o cinema e o pensamento, pois, quando o cinema deixou de ser narrativo é com o cineasta Godard dele se tornar “romanesco”. Godard dá ao cinema as potências próprias do romance. Ele se dá tipos reflexivos como se fossem, estes, intercessores através dos quais Eu é sempre outro (DELEUZE, Gilles. Cinema II: A Imagem-Tempo. Pag. 225-226).
Portanto, para Deleuze, Godard é o cineasta responsável de instituir um cinema do pensamento construindo um devir-cinema que faz nos remeter a filosofia da diferença de Deleuze. Godard estabelece uma ligação entre arte e filosofia, a estética e a ontologia, as imagens e os conceitos, pois o cineasta, tem mais a dizer à filosofia do que esta ao cinema. Na forma que Godard faz cinema, parece que ele tenta responder a grande pergunta de Deleuze “o que é pensar?”


Tomemos ainda um exemplo de cinema: Godard transforma o cinema, introduzindo, nele, o pensamento. Ele não faz um pensamento sobre cinema, ele fez o cinema pensar – pela primeira vez eu creio. No limite, Godard seria capaz de filmar Kant ou Spinoza, a Crítica ou A ética, e não seria um cinema abstrato nem a aplicação cinematográfica da filosofia. Ele encontrou simultaneamente novos meios e uma nova imagem que forçosamente, supõem um conteúdo revolucionário. (VASCONCELLOS, Jorge apud DELEUZE, Gilles. Deleuze e o cinema. Pag. 171)



Desse modo, Deleuze vê o cinema não como o aparelho mais aperfeiçoado da mais velha ilusão, mas como um órgão que aperfeiçoa uma nova realidade e uma nova forma de interpretação das imagens e do tempo. O filósofo francês não cinematiza a filosofia, ele vai introduzir movimento no discurso filosófico, por conseguinte, ele faz do cinema não só um intercessor da filosofia, como também criador de seus conceitos e signos ele faz um pensamento do cinema e apresenta uma nova imagem do pensamento.
Para Deleuze, os conceitos que são próprios do cinema não se esgotam na sua definição técnica. Pois nenhuma determinação técnica, nem aplicada (psicanálise, linguística), nem reflexiva, basta para constituir os próprios conceitos do cinema. (DELEUZE, Gilles. Cinema II: A Imagem-Tempo. Pag. Pag. 332)




BIBLIOGRAFIA
DELEUZE, Gilles. Cinema II: A Imagem-Tempo. Tradução: Eloísa de Araújo Ribeiro: Revisão Filosófica: Renato Janine Ribeiro. São Paulo: Ed. Brasiliense, 2007.

_____________. Diferença e repetição. Tradução: Luiz Orlandi e Roberto Machado. Lisboa - Portugal: Ed. Relógio D’água, 2000.


_____________. Nietzsche e a Filosofia. Tradução: Ruth Joffil Dias e Edmundo Fernandes Dias. Rio de Janeiro: Ed. rio, 1976.


____________. Proust e os signos. Tradução: Antonio Carlos Piquet e Roberto Machado. 2ªed. Rio de Janeiro: Ed. Forense Universitária, 2006.

MACHADO, Roberto. Deleuze, a arte e a filosofia. Rio de janeiro: Zahar, 2009.

VASCONCELLOS, Jorge. Deleuze e o Cinema. Rio de Janeiro: Ed. Ciência Moderna, 2006.

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